Maria Helena Bernardes, agosto de 2025

SEGUNDO OLHAR

É uma tarde de sábado no ateliê de Claudia Flores. Vazias, as ruas do bairro industrial parecem ainda mais largas.
Enquanto prepara o café, Cláudia relembra os anos seguintes ao início de sua trajetória como artista na década de 90. Conta que se dedicou intensamente ao ensino e também se tornou mãe, permanecendo afastada da rotina de ateliê, até o reencontro com seu trabalho, anos mais tarde:

“Quando me vi de volta à arte, fiquei surpresa ao me lembrar do enorme prazer que sinto em trabalhar!”

Passamos a seu espaço de trabalho tomado por telas, algumas em andamento, outras, concluídas e voltadas contra a parede. Projetos, esboços e testes se espalham pelas mesinhas; notas e fotografias aparecem coladas por toda a parte no pequeno mundo salpicado por tinta.

O lugar pulsa com a presença sólida e abundante dos materiais de trabalho e de seus cheiros.

“A relação física com a matéria é extremamente prazerosa para mim” – diz a artista, manipulando um dos bibelôs que toma como modelo em suas pinturas.

Claudia é movida por um sentimento de encantamento pela arte. Não me recordo de ter testemunhado tamanha gratidão pela simples possibilidade de criar.

Ela conta que, ao se reaproximar do mundo profissional da arte, sentiu-se, “frente a um cenário completamente diferente”, marcado por uma profusão de informações e discursos em torno da produção.

“Parece que havia caído ali, vinda de outro mundo”.

Enquanto Claudia segue se atualizando das mudanças no meio das artes, penso que seu trabalho não requer qualquer ajuste, por mínimo que seja. Suas pinturas trazem um silêncio benigno à sala de exposição, reacendendo nossa percepção saturada de palavras.

Isso faz-me pensar em um traço comum aos que se tornaram artistas na passagem do século e que é perceptível na relação de Claudia com a arte.

Visceralidade?

Olho para as telas de Claudia, mas não sinto repercutir nelas a intensidade de auto exposição que essa palavra carrega. Não encontro ênfase ou grito.
Uma atmosfera úmida transborda os bastidores e vem nos sequestrar, aqui fora, para a paisagem dissolvida, onde uma e outra silhuetas se esvaziam.

Num segundo olhar, tudo muda e a profundidade se recolhe: escorridos de tinta e veladuras verticais desafiam o infinito, assentando-o como um adesivo na vidraça.

Olho e não olho.
Sinto mais do que olho, atendendo ao convite destas pinturas.

Mudo de ideia e diria que sim, que há vísceras no humor velado pela sombra e há luz na opacidade rompida pelo fogo de suas pinturas. A atmosfera onírica não é imune aos estilhaços da vida contemporânea: por toda a parte, infiltram-se sinais de um amanhã que se descola do presente, dissipando lembranças e abandonando figuras pelo caminho.

Nesse cenário que atrai e repele, a presença humana cede lugar ao afeto de um bibelô, de um brinquedo ou de uma estampa lavada.
Silêncio no mundo de Claudia.

Há um rastro de beleza deixado em nossa passagem.

Nilda Jacks, agosto de 2022

PAISAGENS QUE NOS HABITAM

Claudia Flores apresenta nesta exposição a figura humana inserida em paisagens, muitas vezes abstratas, compostas de manchas e formas que contextualizam as figuras, dando continuidade a pinturas exploratórias anteriores.

Sua prática parte de imagens variadas (fotos, livros, mapas, entre outras), registros que alimentam ao mesmo tempo um processo indutivo e abdutivo, marcados por deslocamentos e atravessamentos que poderíamos chamar de metonímicos, no primeiro caso, e intuitivos, no segundo. Durante o processo, a observação de outras imagens, além daquelas de referência para a realização de um trabalho específico, é contínua, resultando na incorporação de novos elementos na narrativa do trabalho.

Esse processo materializa-se tanto na técnica quanto nos procedimentos. Através da monotipia, por exemplo, a artista cria algumas “matrizes” que, uma vez “carimbadas” em outros suportes são ponto de partida para a produção de outros trabalhos da série em execução. Claudia parte dessas marcas/manchas e por vezes volta às suas referências iniciais – as imagens ou observações do seu entorno – para então prosseguir no seu fazer artístico, sempre levada pela intuição e a experimentação.

Outra maneira de plasmar seus temas e formas é valendo-se da lógica do palimpsesto, ou seja, o desvelamento de camadas superpostas de tintas através de lavagem subsequentes, até que componham indutivamente algum cenário ou figura.

O resultado final são imagens evanescentes e atmosferas oníricas, as quais resgatam suas memórias, e porque não dizer seu subconsciente, dada sua maneira de trabalhar.

Mayra Martins Redin, fevereiro de 2021

IMAGENS DO DEVANEIO

“Devagar, não importa, todos os momentos vivem. Assim como todos os momentos constroem o mundo. Assim como a sola do pé, as costas, seja lá o que for, tudo se une e constrói o mundo. É melhor se mover lentamente.” (Kazuo Ohno)

Nos trabalhos que compõem a exposição “Imagens do devaneio” vemos acontecer um exercício de transposição. As fotografias de infância encontradas pela artista (em arquivo pessoal e também em buscas na internet) passam por um processo de tradução para a pintura em que adquirem uma sutil movimentação. Talvez como, numa água parada, que, ao ser mexida por um pequeno galho, se torne turva, dela emergindo elementos adormecidos como a lama, a terra, as folhas, as pinturas aqui apresentadas almejam retirar do torpor aquelas imagens já acomodadas que temos da infância.

Nesta transposição da imagem fotográfica para a pintura, encontraremos figuras que ali estão entre uma pose e um gesto, inseridas em um ambiente, em uma paisagem, em uma atmosfera criada pela artista. Os rostos não importam tanto, já que os corpos com suas ações e em sua falta de nitidez movimentam aquilo que antes parecia ser uma imagem precisa e cristalizada pelo recurso fotográfico.

Nesta exposição, importam mais os ruídos dessa movimentação vagarosa; e, da mesma forma como nossa memória pode ser acessada e ativada a partir de outros elementos para além de uma imagem, como um cheiro, uma sensação corporal (quente, fria, morna), um sabor, a construção de uma ambiência na composição do fundo e dos arredores das figuras também é parte importante desta elaboração do que será entendido como devaneio.

Misturam-se aqui as infâncias e seus devaneios acessados pela memória. Em sua busca por provocar e borrar tais limites, esta exposição nos convida a mergulhar também em um para-além do que a imagem nos oferece. Se adiantássemos ou atrasássemos alguns segundos uma cena qualquer de nossa memória, o que encontraríamos lá?

As pinturas parecem aumentar algumas memórias de infância (inicialmente clichês) com gestos expressados por suas figuras humanas. São corpos que revivem alguns recortes de tempo firmados pela fotografia alimentando-os com movimentos.

Mas não se trata de qualquer movimento: é um movimento quase parado que lembra mesmo a retomada de algo perdido ou deixado para trás, oferecendo-lhe a possibilidade de se mexer, pouco, devagar, sem a obrigação e talvez até contra a obrigação de se manter fiel à cena inicial, presa por uma memória. Nesta direção, a artista em seu processo procura também respeitar seus próprios gestos de começo, tentando não sobrepor muitas camadas nem cair na armadilha de achar uma finalização ou um contorno nítido para as pinturas.

É assim que estas imagens reestabelecem e convidam o espectador para um estado de imersão que é comum às crianças. Aparentemente, elas nada fazem quando param para observar algo. Mas a tentativa aqui, traduzida por uma ideia de devaneio, é dar lugar ao movimento, mínimo, sutil e, muitas vezes, invisível, escondido em nossas memórias da infância.